segunda-feira, 25 de junho de 2012


TIBÉRIO BURLAMAQUI – PÉROLAS DISPERSAS
Marcos Antonio Filgueira
Discurso de posse na Academia Mossoroense de Letras, cadeira nº 13, Patrono: Tibério César Conrado Burlamaqui
Senhor Presidente da AMOL
Caros Confrades,
Com certeza, a escolha do patrono pelo acadêmico, além de referir-se aos requisitos fixados pelo regulamento da casa, também se faz pela similitude intelectual entre ambos. Em tudo que li e ouvi sobre o escolhido sempre encontrei, a par de sua capacidade poética, a marca da simplicidade. Como seu descendente herdei com certeza essa virtude, mas, não o pendor literário. Contento-me em afirmar com Jorge Luis Borges: alegra-me mais o que tenho lido do que a obra que possa vir a escrever. Na simplicidade, então, o nosso ponto comum, na leitura dos seus versos, o meu prazer.
O patrono da cadeira nº 13 desta casa, Tibério César Conrado Burlamaqui, não possuía formação superior e de acordo com sua filha, Nair Burlamaqui Rosado, não havia se quer concluído o curso primário, sentindo por vezes dificuldades com a grafia de algumas palavras. Não lhe foi isso porem obstáculo a abundante produção literária que continuamente realizou no “O Mossoroense”.
Como tantos outros, foi um mossoroense por adoção. Um dos muitos que se apaixonando por esta terra maravilhosa, contribuíram com o dom de que eram aquinhoados, para o engrandecimento da cidade.
Nasceu em Oeiras, Pi aos 06 de novembro de 1869, filho de Fontenelle César Burlamaqui e de Lídia da Silva Conrado. Transferiu-se de sua terra natal inicialmente para o Recife, e em 1892 chegou a Areia Branca, sempre como auxiliar da casa de comércio “Alexandre de Souza Nogueira”.Naquela cidade, onde foi presidente da Intendência no período de 1899 a 1901, casou-se em primeiras núpcias com Cecília de Souza Filgueira, e por morte desta, consorciou-se com Luiza de Souza Filgueira, ambas filhas de Trajano Filgueira de Melo, membro da tradicional família Camboa.
De sua experiência administrativa naquela cidade conheço um único registro feito por Luis Fausto de Medeiros no livro “Minhas Memórias de Areia Branca”.Em sessão extraordinária, no dia 13 de julho de 1901, sob a presidência de Tibério Burlamaqui, a intendência do município de Areia Branca discutiu a lei nº 639 de 19 de julho de 1901 que elevava Grossos à categoria de vila do Termo de Aracati. Tibério considerou a lei inconstitucional e qualificou-a de esbulho. Era a famosa questão de limites entre o Rio Grande do Norte e o Ceará.
Mudando-se para Mossoró em 1904, estabeleceu-se no bairro Paredões, hoje quase centro da cidade, naquela época, esconso subúrbio. Dali, preso a uma cadeira de rodas, qual prometeu acorrentado, participou com sua poesia, da vida intelectual da cidade.
Ao “O Mossoroense”, órgão que viu nascer em sua segunda fase e do qual participou desde o segundo número, dedicou a maior parte de sua vida, ao lado de João da Escossia.
Foi sempre figura de vanguarda em todo acontecimento que dissesse respeito ao bairro onde vivia, apesar da paralisia de que era acometido. Tibério, com seu espírito sempre alegre, organizava clubes recreativos, blocos de carnaval, onde colaborava com sua participação positiva para maior festividade dos acontecimentos.
Possuía, contudo, caráter arredio, compreensível se atentarmos para todo o sofrimento que a cada passo encontrou na vida. Sorveu, porem, as taças amargas do infortúnio, transmutando o pranto em canto, as vezes dolente.
Quer no seu Rimando, de rimas alegres, ou nos versos alexandrinos de coisas sérias, tocantes, usando os pseudônimos de Novais, Maurício d’Herval, Genuíno Silva e por vezes assinando seu próprio nome, foi com maestria que durante 30 anos cantou o cotidiano de Mossoró e de sua dor.
Toda poesia, todo poema, resulta da harmonia combinatória de três níveis superpostos de realidade: o essencial, o semântico e o fático. Noutras palavras, a razão de ser do poema, o nível do dizer do poema e o fático, onde a poesia pode se tornar um agente de humanização do homem.
A poesia de Tibério destaca-se, sobretudo, pelo último item.
É quase desconhecida sua contribuição. Já em 1939, Cosme Lemos perguntava em texto lido em amplificadora, que então substituía os modernos meios de comunicação em Mossoró – “… porque mãos artísticas não procuraram juntar as ricas pérolas de poesia que Tibério Burlamaqui foi tão pródigo em criar e perder no caminho da vida”. A pouco surgiram essas mãos. Vingt-un Rosado, soldado indormido na batalha pela cultura oestana, através do Dicionário de “O Mossoroense” e Raimundo de Soares de Brito, sistematizador da nossa história regional, no seu livro ainda inédito – Tibério e o Cotidiano de Mossoró, resgatam para a posteridade, a poesia do Príncipe dos poetas mossoroenses.
Vasta e vária, podendo-se explora-las nas direções mais diferentes, não intentaria nesse instante abordar sua poesia em todas as suas vertentes. Convido-vos, porem, caros confrades, a embalar o espírito “no ritmo tranqüilo e doce dos seus versos”, como melhor defesa e julgamento de sua vida literária, pois creio ser o melhor elogia que a ele se possa fazer, e única maneira de conhecer-lhe a alma.
Ao acaso, pincemos algumas de suas pérolas dispersas.
No soneto “Sonhos ao Mar”, o poeta se refere aos sonhos da juventude que se foram com o infortúnio e que muito tem de universal na alma humana.
Águas do mar de irrequietas vagas
Do azul do céu, da cor dos arrebóis;
Que geram terras, que circundam fragas
Puras e limpas como são os sóis
Águas do mar eternamente em pragas
Quebras, gemendo estrídulos bemóis
Águas criadoras, dos corais, das algas
Peixes e pérolas, branqueais lençóis
Águas que sofrem como nós mortais
Magoas internas pelos temporais
Tristes quebrando pelas penedias
Águas que rolam e atroadoras lutam
Águas que os ais deste meu peito escutam
Guardai meus sonhos dos primeiros dias
Em Areia Branca, morava a “A beira mar” e com esse título constrói primoroso soneto onde exprime sua dor, comparando sua vida as tormentas do mar.
“Acho no mar um doçuroso encanto”
Ela me disse quando o sol morria,
E longe o velho mar o dorso erguia,
A rugir, a rugir causando espanto
“Meu coração que tem sofrido tanto
Meu coração que vive em agonia
Gosta dessa tristeza e nostalgia
Sente-se bem, aqui neste recanto”
Dizem que a vida é como o mar, não creio
O mar que daqui vejo sem receio
Muitas vezes descansa em calmaria
Só minha vida procelosa e triste
É mar onde a ventura nunca existe,
É mar que há de matar-me qualquer dia
Em vários de seus sonetos Tibério deixa transparecer clara preocupação ecológica como em “Ante um machado” que derrubava uma carnaubeira secular. Ele dizia:
Impiedoso machado que trabalha
No vetusto d’um tronco rijo e forte
D’uma palmeira secular do Norte
Porque teu gume vil corta e a retalha
Quem lindas palmas tem, quem sombra espalha
Quem dá bons frutos,porque sofre a morte?
E a cera que se extrai em cada corte
De muitos centos, de tão útil palha?
Do braço forte que te eleva a prumo
Desviar eu pudesse agora o rumo
Que fonte de riqueza então salvava!
Cegueira humana! Corta-se num dia
Alta, pomposa, secular esguia,
Régia palmeira que proveitos dava
Através dos seus Rimandos, fazia Tibério a crônica em versos da cidade. São rimas diferentes dos versos acima lembrados. Referem-se a uma festa de aniversário, sobre os loucos que existiam em Mossoró, sobre os melhoramentos para a cidade, como a colocação de lampiões, sobre o carnaval, o antinevrálgico Rosado, as seca etc, sempre assinando como NOVAIS. Assim o poeta descreve essa seção do jornal “O Mossoroense”:
Esta seção do Rimando
É minha e de ninguém mais
As vezes sai incensando
Outras, cortando os mortais
E mais adiante concluía:
Com certeza muita gente
Corta a pele do NOVAIS
Mas ele se faz demente
E corta a casaca dos mais
Sobre a questão dos limites entre o Rio Grande do Norte e o Ceará, anteriormente citada, um exemplo do seu Rimando:
Eu sempre tive uns palpites
Que da jurema ao Tibau
Na tal questão de limites
Tão “pau” por causa dum pau
Os terrenos eram nossos
Como de fato hoje são
E os “grossos” mesmos de Grossos
Nos tratariam de irmãos
Por isso o primo Mendonça
- Um refinado tratante-
Montou-se num porco onça
E eu num porco elefante.
Ao não cumprimento de promessas de açudagem no local Saco, outro exemplo da poesia de Tibério a favor de Mossoró:
Segundo reza a doutrina
Que me ensinou minha avó
Quando o tempo é de invernada
E é mui grande a trovoada
A chuva é fina, neblina
Vai-se em vento e vira em pó
Assim foi que sucedeu
Com o açude do saco
Que o governo prometeu
Ao povo que tem o fraco
De acreditar em judeu
Não eu…Novais
Assim era Tibério, cuja versatilidade poética só é bem aquilatada quando se conhece toda a sua obra. Ora humorístico, ora em elucubrações bem sérias. Compare-se, por exemplo, a leveza de “Proeza de Cupido” com “Alma e Carne”:
No primeiro soneto o poeta retrata o namorado que tenta aprender a fazer rendas e bordados com sua amada, porem sem êxito.
Ri o moço porem atrapalhado
Vai machucando as rendas e o bordado
Num doce enlevo, sem sentir demoras
“Era só que faltava” a moça grita
“Quebrou a agulha, amarrotou a fita
E três pontos não deu em duas horas”
Já em “Alma e Carne”, o poeta mostra preocupação bem séria, onde parte da quase descrença, para a fé na imortalidade da alma:
Quando contemplo a sordidez dum verme
No baixo chão, nas cousas deletérias,
Das cloacas, dos monturos, das misérias
Da carne humana putrefata, inerme
Sinto um frio mortal pela epiderme
E ante o evoluir e força das matérias,
Creio e descreio em deduções bem sérias
Tremo com medo que meu corpo enferme
Penso depois, talvez com fundamento,
Que dentro de mim mesmo alguém labuta,
Contra o invol’cro carnal e entendimento
É minha alma, senhor, alma impoluta
Que um dia ascenderá ao firmamento
Livre da terra e da matéria bruta
Sobre Tibério, a opinião de Cosme Lemos:
“Tibério, para mim, foi um grande e inspirado poeta – seus versos possuíam a espontaneidade das fontes perenes e a alegria policrômica das flores do prado. É que a poesia não quer dizer letras, desconhece graus de cultura, despreza a sapiência filosófica, para somente amar e bendizer o belo e criar a beleza em toda parte, até mesmo no que é horrível e monstruoso. Ninguém melhor do que Tibério soube aquilatar os dons e encantos da natureza. É que ele era um simples e um bom”.
O confrade Raimundo Nonato, em Roteiros da Zona Oeste, aplicou a Tibério, as palavras de Ronald de Carvalho sobre o poeta negro Cruz e Souza: “Esse plagiador de Deus tinha em casa um dicionário e sua alma”.O suficiente.
Agora, caros confrades, nesta amostragem ligeira da imensa produção literária de Tibério, os últimos versos de quem cantou quase até a morte. Quando já sentia que esta lhe rondava a existência e a ausência dos amigos estava bem próxima, dedicou a Mossoró seu último soneto:
Aos trancos e barrancos na partida,
Nos caminhos incertos da existência
Por alguns fui tratado com clemência
Por outros de maneira aborrecida
Mas aqui encontrei compadecida
Gente estranha, leal, de consciência
De justo proceder, cuja influência
Foi um bem que me guiava pela vida
Meu Deus! Com que tristeza me defino!
Como pagar a dívida que devo
Se sou tão obscuro e pequenino?
Mostrar eu bem queria a gratidão
Que sinto como flor de alto relevo
Cultivada por mim no coração
Poucos dias depois de ter escrito esse soneto, morreu Tibério. A data é 10 de abril de 1932. O jornal “O Mossoroense” noticia: “As primeiras horas da madrugada do último domingo, quando já circulava pela cidade esta folha, foi que tivemos a lancinante notícia do falecimento de nosso antigo e dedicado companheiro de lutas, Tibério César Conrado Burlamaqui”.
Calou-se Tibério e esteve mudo até a noite de hoje quando novamente se ouviram seus versos.
Dignifica esta casa, como patrono, um homem cuja melhor biografia são seus sonetos, cujo espírito teimou sempre em buscar o infinito, apesar de acorrentado, pelo infortúnio e pela miséria em que viveu.
Muito obrigado!                  Postado por Marcos Antonio Filgueira.